CELEBRAÇÕES ETNICAS E OS RITUAIS INCULTURADOS

CELEBRAÇÕES ÉTNICAS

E OS RITUAIS INCULTURADOS


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Livro “Liturgia no Vaticano II – novos tempos da celebração cristã”  Antônio Sagrado Bogaz – João Henrique Hansen

Estamos em 1965. Terminou o Vaticano II. Os pastores de nossas Igrejas vem para suas comunidades diocesanas com o grande intuito de colocar em prática as decisões do Concílio.

Dentre os temas mais imperantes, como se apresentaram nos diversos documentos (constituições, decretos, motu-próprio) encontramos o desafio da enculturação, pelo qual a igreja solicita que superemos o longo período dos rituais sem inculturação e busquemos acolher a riqueza da religiosidade e das culturas dos povos cristãos, sobretudo nas missões. Eis o apelo da Sacrosanctum Concilium (37 – 40).

Neste caminho, a inculturação foi o fenômeno que mais dinamizou as celebrações litúrgicas no Brasil, com as decisões do Concílio Vaticano II.

Foi um processo impressionante, com grande forças em várias regiões e grupos culturais, que transformou o rosto de nossas liturgias. 

A dinâmica da enculturação, complexa e transformadora, foi assimilada dentro dos vários sacramentos, mas sobretudo nos rituais da celebração eucarística, do batismo e matrimônio.

Ao investigarmos este tema, percebemos que em varias regiões do Brasil aconteceram experiências fascinantes que passaram a agregar o repertório litúrgico aos bens culturais das várias etnias. Basta lermos um Documento sobre enculturação no Brasil, dos nossos Bispos.

A inculturação expressada por meio da liturgia tem sido uma resposta às novas sensibilidades da Igreja. A ação afro-pastoral tem primado por esta prática. Além de dar nova expressão às celebrações, constitui verdadeira catequese inculturada , onde as pessoas de origem ou não percebem, à luz da Palavra de Deus, os valores embutidos em suas culturas”(CNBB – Adaptar a Liturgia, tarefa da Igreja).

É necessário que todos os rituais inculturados respeitem  as orientações do Magistério da Igreja quanto às normas fixadas pelas autoridades eclesiásticas. São fundamentais os caminhos traçados pelas autoridades, pois temos que nos ajustar às mudanças culturais, bem como integrar valores das etnias tradicionais, dentro das orientações para não perder a unidade do Ritual Romano (SC 38). Os grupos étnicos e todos os seus participantes confessam a fé cristã e assumem seus elementos culturais, os quais adentram o repertório litúrgico (linguagem, vestes, cantos, etc.)

É importante destacar que os títulos dados a estas celebrações não caracterizam sua essência, mas se trata de rituais que acolhem bens culturais destes povos contemplados pelo ritual. Trata-se da mesma fé, do mesmo mistério e da mesma Igreja

 

INCULTURAÇÃO NO CONTINENTE

Os desafios e os anseios da enculturação foram sempre presentes na Igreja Latino-Americana. Todos os padres conciliares assumiram o propósito de aproximarem-se dos povos nativos e autóctones e levaram muito a sério o processo de acolhida dos bens culturais e religiosos dos povos indígenas, africanos, caipiras, caboclos entre tantos.

Foi uma grande empreitada teológica, cultural e litúrgica. Com coragem, fé e disposição de espírito iniciou-se um processo fecundo e maravilhoso de inculturação litúrgica.

Na Conferência de Santo Domingo evidencia-se muito a igreja primitiva, manifestando maior consciência da magnitude das culturas ameríndia e afro.

Desta maneira toda religiosidade popular dos camponeses, caipiras, sertanejos, entre tantos vão de encontro ao reconhecimento das expressões de fé. Pois, encontramos nesta pluralidade de grupos, principalmente nas grandes periferias, a elaboração de um repertório litúrgico mais voltado para a realidade cultural dos fiéis.

Podemos entender que a celebração litúrgica vai ser executada com uma imensa força evangelizadora. Não podemos esquecer, no entanto que nesta perspectiva de inculturação nas etnias, é fundamental a presença do ecumenismo dentro da liturgia.

 

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Missa da Primavera – Matriz Nossa Senhora da Saúde
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Tríduo São Luís Orione – Festa Italiana – Paróquia N. Sra. da Saúde

 

As celebrações étnicas devem ser trabalhadas com muito cuidado, pois este rigor pertence a Santa Igreja. 

Para a prática deste senso comum na vida celebrativa, a junção de várias culturas deve ter como direcionamento celebrar uma liturgia verdadeiramente cristã, respeitando as orientações do magistério, os valores da fé cristã, o respeito às devoções e nunca sair do caminho da espiritualidade católica.

Destacamos que o principal momento que desperta para a inculturação se deu na Conferência do CELAM em Puebla (1979). São conquistas a serem preservadas para sempre na vida da Igreja. Todos os povos recebem a inspiração divina para elaborar seus ritos litúrgicos. 

É necessário que as celebrações étnicas, responsabilizem-se pela dinâmica do ritual da Igreja e embelezem estes ritos com expressões linguísticas, símbolos, gestos e cantos, trazendo a tradição como elemento cultural. 

MÍSTICAS DAS CELEBRAÇÕES INCULTURADAS

Foi o Concílio Ecumênico do Vaticano II, que nos permitiu conciliar os rituais das celebrações litúrgicas com as diversas culturas regionais de cada país. Antes do Vaticano II, toda a Liturgia de missas católicas do rito latino (Apostólico Romano), era feita em latim; após o Concílio houve a tradução e adaptação da liturgia para outras línguas nacionais.

Desta maneira, todos os povos puderam compreender perfeitamente as celebrações litúrgicas e que abrangessem também as linguagens e dialetos regionais. No Brasil, tivemos a tradução do latim para a língua portuguesa, onde ganhamos, também, nas celebrações de termos linguagem, ritmo, estilos e símbolos tradicionais que representassem cada uma, uma região do Brasil, como a Missa Crioula, que representa o povo gaúcho na região sul do país.

Nesta celebração, a chamada Missa Crioula, tem suas características particulares; no entanto possuem o mesmo sentido espiritual e religioso de uma missa tradicional, utilizando valores linguísticos da região e simbologia do povo gaúcho.

Em 1967, dois padres gaúchos: Paulo Aripe e Amadeu Gomes Canelas desejaram colocar a celebração da missa mais próxima dos gaúchos e fizeram uma solicitação ao Bispo de Porto Alegre, que na época era Dom Vicente Scherrer e ao Papa Paulo VI, enviaram a Missa Crioula, incluindo cantos, preces, orações próprias, com rima bastante acentuada na linguagem do sul e oração litúrgica.

 

REPERTÓRIO LITÚRGICO INCULTURADO

Encontramos a linguagem litúrgica diversificada nas várias celebrações que contemplam os valores étnicos e culturais dos povos. A essência da vida litúrgica é a mesma para todos os povos. Podemos citar alguns elementos culturais, relacionados à linguagem e aos símbolos, que são propícios para a verdadeira inculturação do repertório litúrgico dentro das etnias.

Na chamada “missa crioula”, Jesus Cristo é chamado nesta celebração de O Divino Tropeiro e Nossa Senhora de Primeira Prenda Celeste. O Espírito Santo é Divino Candeeiro e Deus é chamado de Pai Celeste, nesta linguagem  típica dos pampas.

Na história do Rio Grande do Sul tivemos um momento muito trágico que foi a guerra entre Margatos (que usavam os lenços vermelhos) e os Chimangos (que utilizavam lenços brancos). Relembrado na Missa Crioula, conta-se a história a fim de buscar a paz e a compreensão entre os homens. Na celebração,  os homens depõem as armas, representadas por facões, colocando-a num canto do altar. Na cruz entrelaçam-se os dois lenços, branco e vermelho pedindo a paz e o perdão entre os homens.

São elementos significativos e importantes para assumir a realidade do povo gaúcho. No Canto Penitencial, por exemplo, observa-se a simplicidade na Celebração da Missa:, representado pelos textos com linguagem inculturado. Vejamos:

Supremo Patrão do Céu. Tende pena do rebanho (3 x)

Jesus, Divino Tropeiro. Tende pena do rebanho (3 x)

Espírito Santo Vaqueano.  Tende pena do rebanho (3 x)

O título “Deus”  é trocado por Supremo Patrão do Céu, Jesus chamado de Divino Tropeiro, ou seja, Trabalhador como todos os homens e o Espírito Santo Vaqueano numa ideia de quem conhece o caminho, ou seja, em outras palavras, a sabedoria. Esta celebração não é realizada no dia a dia, somente em ocasiões muito especiais.

 

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Missa Sertaneja – Matriz Nossa Senhora da Saúde

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Missa Nossa Senhora das Candeias – Juazeiro do Norte – CE – Imagens do fime “Sangue no Serttão – a história de Padre Cícero”
 

Sigamos o ritual da Missa inculturada na simbólica de outros povos. Como a Missa Crioula, temos outras como a Missa dos Quilombos, com música de Milton Nascimento, através de texto de Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra.

A Missa Sertaneja, por exemplo, mostra a dignidade dos povos do sertão, sendo um belíssimo resgate de sua cultura.

A intenção como sempre é mostrar a presença de Deus no dia-a-dia das pessoas.

Na felicidade de comemorar a vida, todos os fiéis dão as mãos para agradecer a Deus, onde a Celebração é sempre uma Ação de Graças.

A Missa do Vaqueiro segundo a lenda que acabou surgindo com a história de Raimundo Jacó, quando aboiava seu canto, atraía o gado para perto dele, assim como Jesus Cristo atraía as pessoas, os apóstolos e os discípulos para ouvi-lo falar.

Por iniciativa do Padre João Câncio, no ano de 1971, apoiado pelo famoso cantor Luiz Gonzaga, que era parente de Raimundo Jacó, e pelo famoso repentista de Cariri, o poeta Pedro Bandeira celebrou-se a Primeira Missa no local em homenagem a Jacó.  A figura do Vaqueiro Nordestino imortalizou-se a partir daí.

 

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Imagens do filme “Memórias do Coração –  vida e obra de Eugênio de Mazenod”

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Missa do Meio Ambiente – Horto Florestal – Rio Claro

A Missa da Terra sem Males nasceu nas ruínas de São Miguel, no Rio Grande do Sul. A trágica história da Resistência dos Povos Indígenas frente aos conquistadores marcada de sangue e dor, é uma missa que vai da memória ao remorso, da denúncia ao perdão. Os conquistadores roubaram e dizimaram tudo o que existia neste continente, não sobrando absolutamente nada, a não ser a triste história que marcaram os indígenas para sempre, o que justifica tão grande número de nativos que existiam e hoje tão pouco.

A beleza de nossas celebrações nos faz ver a melodia que eleva Deus Filho e Deus Pai nesta Missa da Terra sem Males que conjuga nossa cultura e nossa imensa fé. Este é o testemunho da realidade dos povos oprimidos em nossa realidade brasileira e latino americana.  O repertório litúrgico se enriquece com a história e os bens culturais destes povos, revelando a riqueza que se esconde na vida cotidiana desta gente´.

Nossa Igreja quer ser para estes povos uma mãe que acolhe e não despreza seus valores e sobretudo que não os trata com desprezo e preconceito como muitas vezes ocorre nas mídias sociais, nas escolas e em tantas igrejas.

 

UM CAMINHO COM FLORES E ESPINHOS

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Missa da Primavera – Matriz Nossa Senhora da Saúde

É preciso uma visão humanitária  muito grande e uma profunda abertura ao Espírito para acolher os valores  étnicos dos outros povos. Antes de tudo nós temos uma grande tendência em menosprezar os valores diferentes dos nossos valores originais.

Sempre acreditamos que o “diferente” é inferior e não tem a mesma importância que nossos bens culturais. Depois, temos uma herança de séculos em que os sacramentos não acolheram estes bens culturais dos povos evangelizados.

Para acolher a inculturação é  importante distinguir  a essência do mistério litúrgico das  suas representações iconográficas, representadas nos símbolos, linguagem, vestes e vasos sagrados.

Pertence à essência da liturgia o mistério de Cristo, que é o fundamento essencial de toda liturgia cristã. Pertence ao repertório litúrgico os elementos rituais para celebrar o Mistério. Havendo confusão entre eles, torna-se difícil acolher o processo de inculturação.

É preciso, sobretudo, ter paciência e muito rezar por aqueles fiéis que descarregam nos rituais todos seus preconceitos dissimulados e não aceitam os dons dos outros povos como expressão do mesmo Espírito, que ilumina todos os povos e, em Cristo, nos faz todos irmãos.

 



Pe. Antônio Sagrado  Bogaz – Prof. João Henrique Hansen

Autores de Reforma litúrgica: renovação ou revolução. Paulus: 2015

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Conhecendo mais…  

 
As celebrações étnicas no Brasil acabaram se direcionando para vários caminhos. Por ser um país muito grande, tem uma diversidade cultural enorme, motivada pelas diferentes raças que o colonizaram. O Brasil tem, portanto, suas celebrações étnicas bem variadas.  
Os portugueses colonizaram o Brasil de norte a sul, logo após sua descoberta. Em seguida outros países europeus foram chegando. Os dez milhões de indígenas, que hoje não chega a meio milhão de habitantes, foram os mais sacrificados na História do Brasil. Os negros, por sua vez, foram trazidos da África como escravos para servir aos colonizadores.
Pode-se pensar claramente que houve injustiças sociais, fome, falta de liberdade e dramas humanos durante séculos. Mas a fé do povo brasileiro nunca esmoreceu e jamais nossos povos perderam sua crença em Deus. 
A missa afro-brasileira apresenta-se de várias formas, uma vez que os escravos tiveram sua vivência em diversas regiões do país. Como por exemplo, no norte, temos a Missa dos Quilombos, o famoso e triste episódio dos Palmares, que se trata de uma celebração mais técnica, utilizando a liturgia direcionada ao fato histórico. 
Na vertente da linha afro-brasileira, encontramos a figura da  Mãe Negra, lembrando as escravas que serviam de ama de leite aos filhos dos seus donos, principalmente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. 

CELEBRAÇÕES ÉTNICAS NO
“CONTINENTE BRASIL”

 

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Livro “Reforma Litúrgica – renovação ou revolução?”
                Antônio S. Bogaz – João H. Hansen                

Ainda nesta vertente, encontramos a missa de São Benedito, que pretende mostrar a devoção do povo a este santo negro, principalmente na maior cidade do Brasil, em São Paulo. 
No Estado de Pernambuco vamos descobrir a Missa do Vaqueiro, que reúne mais de cinquenta mil pessoas, uma vez por ano, que vão reverenciar o vaqueiro Raimundo Jacó. 
Trata-se de um homem de bom coração que vivia cuidando do gado e que foi brutalmente assassinado.  Transformou-se num símbolo dos vaqueiros.
O Estado de São Paulo congrega muitas celebrações litúrgicas endereçadas a vários tipos de pessoas, pois como é um estado muito populoso e com uma miscigenação imensa, as vertentes das missas étnicas espocam em todos os cantos.
O personagem do vaqueiro em São Paulo aparece com o sinônimo de caipira, de onde vamos encontrar a Missa Caipira, que é uma grande devoção popular não só no Estado de São Paulo, mas também em alguns outros estados do Brasil. 
Na região sul do Brasil encontramos a Missa de Terra sem Males, direcionado aos povos indígenas que foram ceifados quando os europeus chegaram para conquistar esta terra.  
As ruínas das Missões, no Estado do Rio Grande do Sul permanecem como o monumento mais trágico desta grande dizimação.
Neste mesmo estado temos a conceituada Missa Crioula que atende a fé do povo gaúcho. No imenso estado do Amazonas encontramos, também, uma missa especial que celebra o povo indígena.
 

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