CRISTIFICACAO DO UNIVERSO A FORÇA TRANSFORMADORA DO CORPO DE CRISTO

CRISTIFICAÇÃO DO UNIVERSO

A FORÇA TRANSFORMADORA DO CORPO DE CRISTO

 

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Há muitos séculos, a Igreja celebra a solenidade de Corpus Christi. Por certo, o mistério de Cristo vivo na Eucaristia é revelado na Ceia do Senhor, quando tomou o pão e disse “este pão sou eu” e fez o mesmo com o cálice com vinho. Naquele momento, os discípulos entenderam que o Senhor se faz presente, como verdadeiro Cordeiro divino nas espécies consagradas sobre o altar. E ao longo dos séculos a comunidade cristã celebrou com grande fervor este mistério sacramental. Este mistério foi considerado em todos os tempos como o mistério mais elevado e grandioso de todos os nossos dogmas. Em todas as famílias litúrgicas, sejam no Oriente ou no Ocidente, este ritual foi sempre celebrado com grande solenidade, com grande participação e sempre considerando a presença verdadeira e real do Senhor.

Por esta razão, foram celebrados movimentos de adoração e mesmo grandes congressos, para sempre fortalecer a fé do povo de Deus. Celebrar a Eucaristia é uma grande profissão de fé. É tão elevado, que muitos cristãos não têm habilidade para atinar a plenitude deste dogma cristão. Neste sentido, surgiu a adoração à Eucaristia e a sua exposição pública, pelas ruas e pelas cidades.

 

O que é esta solenidade tão excelsa? Esta festa cristã é a exaltação da presença real de Cristo no pão consagrado na ceia eucarística. Confirma ainda a presença de Deus em todo universo, como uma força espiritual que inunda de luz toda escuridão e carrega de harmonia todos os espaços do mundo. Esta é a festa da cristificação do universo e de todos os povos. Cristificar implica dizer a renovação de todas as coisas criadas, como se a santidade de Cristo embebesse todas as coisas e todas as pessoas. Cristificar a criação é dar-lhe a possibilidade de harmonizar-se novamente, como na sua origem, relatada nos textos bíblicos da criação, como em outras doutrinas que professam um Deus Criador.  Cristificar a humanidade significa renovar os laços de fraternidade, promover a solidariedade e restabelecer a unidade entre os povos cristãos. Este é o sentido desta festa solene, que surgiu em momentos de grandes conflitos na Igreja.

 

FLOR DE LOTUS BROTA NO PÂNTANO

Uma das fábulas mais antigas e mais significativas dentre os povos asiáticos descreve como a delicada e formosa flor de lótus nasce no meio do lodaçal do pântano, para dizer que os grandes sentimentos nascem no epicentro dos conflitos e mesmo das maldades. Nas misérias humanas se revela a beleza dos mais nobres sentimentos. Deste modo, nesta metáfora, podemos compreender como no meio dos grandes conflitos eclesiais do início do Segundo Milênio, foi se fortalecendo o mistério eucarístico e se iniciaram as procissões de Corpus Christi.

Entre os séculos XI e XII, na Europa, especialmente na França e na Espanha, surgiram vários movimentos denominados “espiritualistas”, entre eles os valdenses, os albigenses, os cátaros e o hussitas. Esses movimentos contestavam as estruturas eclesiásticas e as criticavam, acusando-as de desvios da verdadeira igreja. Para estes movimentos, as estruturas rituais e hierárquicas não são necessárias para viver o cristianismo. Deste modo, negavam os sacramentos concebidos pela tradição da Igreja e negavam a presença real de Cristo na Eucaristia. Foram movimentos populares muito envolventes que carregavam consigo grandes multidões que não aceitavam a adoração ao Santíssimo Sacramento. 

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Deste modo, os fundadores destes movimentos fundaram novas comunidades e lutavam contra a Igreja cristã católica, seus dogmas e seu clero. Por certo, a reação da Igreja e do estado foi muito imperativa e gerou muitas guerras dentro dos povoados e houve também muita perseguição.

Do ponto de vista religioso e litúrgico, a reação mais nobre foi a promoção de movimentos de reparação da devoção eucarística. Surgiram os movimentos de adoração ao Santíssimo Sacramento, comunidades adoradoras e, sobretudo as grandes procissões, que levaram para as ruas e para as praças as homenagens ao Cristo Eucarístico. Esta é a gênese desta solenidade que atravessou os séculos e veio para nossos países no bojo da liturgia barroca, que sempre valorizou enormemente a presença real do Cristo na Eucaristia.

 

UMA FESTA CHEIA DE GRAÇA E BELEZA

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Entre nós, em nossas comunidades, a celebração de Corpus Christi tem uma importância popular intensa e preciosa. Sua celebração ocorre sempre na quinta feira, logo após o domingo da Santíssima Trindade.

O Missal Romano a apresenta como a solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi), como profissão de fé na presença real de Jesus Cristo na eucaristia.

Os fundamentos religiosos e doutrinais desta festa estão na celebração da Ceia do Senhor, com seus discípulos, na véspera de sua paixão. Sem a instituição da Eucaristia, esta festa perde todo seu significado, pois sua dimensão folclórica e ritual serve apenas para o engrandecimento deste mistério e torná-lo mais popular e adorado.

Como Jesus elevara o pão e o vinho e se tornara o “cordeiro do sacrifício” surge o gesto ritual de elevar a hóstia depois da sua consagração, na celebração eucarística. Aos poucos, no decorrer das gerações, a eucaristia se apresenta como sacrifício e refeição. 

A Eucaristia é considerada o coração de nossa vida litúrgica e tem sua exaltação em dois momentos importantes dentro do Ano Litúrgico, quer sejam a Instituição da Eucaristia, quando Jesus se reuniu e partilhou a ceia pascal com seus discípulos, e esta solenidade, concebida para elevar e expandir este mistério. A escolha da data deste ritual é dentro da perspectiva pascal e, depois, Trinitária. Como Deus se revela como Triuno, deste mesmo mistério emana a sua entrega na hóstia consagrada. Deus se entrega ao universo e o consagra como sua obra, e o Cristo o nutre com sua presença eucarística. Voltamos a anunciar a cristificação de todas as coisas.  

 

O CORAÇÃO DO MISTÉRIO

É muito bonito; é mesmo fascinante ver os fiéis celebrando Corpus Christi. Vive-se o momento como se todo o universo se inclinasse diante de tão grande beleza. Unem-se a doutrina e a religiosidade popular dentro do mesmo ritual. A elevação espiritual é imensa. Assim que vale a pena entender a profundidade deste grande sacramento. São três suas perspectivas religiosas dentro do mistério pascal.

A perspectiva primeira é a memória de uma história antiga. Desde os primórdios, celebra-se a oferenda do cordeiro a Deus. Este cordeiro que se revive é a entrega amorosa de Cristo à humanidade. Ele é o cordeiro de verdade, que oferta sua vida e cujo sangue purifica a humanidade. Na perspectiva memorial, o Cordeiro dos antigos holocaustos é substituído pela autoentrega de Cristo na cruz.

A segunda perspectiva é a compreensão do “corpo divino de Jesus” como sacramento da unidade entre todos os povos, entre os cristãos e entre os católicos. Partilhar do mesmo corpo eucarístico implica em comungar dos mesmos ideais e dos mesmos sentimentos.

 

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A terceira perspectiva se refere à cristificação do mundo, onde Cristo será tudo em todos, unificando o cosmos, todas as coisas criadas e todos os seres humanos. O sonho de Deus é a fraternidade universal e a harmonia cósmica. 

Contemplar o sacramento eucarístico elevado no ostensório na Procissão indica que Deus está presente com humildade naquele pão consagrado e que a esperança de Deus é um mundo de irmãos.

Todo brilho do ostensório, todas as pedrinhas decorativas  e todo colorido dos tapetes é um aceno para o mundo que nós cremos num Deus presente, capaz de   renovar nosso coração e transformar o mundo.

 

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FOLHEANDO AS PÁGINAS BÍBLICAS

Podemos encontrar nas páginas bíblicas mais antigas os traços desta festa realizada nas ruas e nas praças. Se o ostensório é como a Arca, o corpo de Cristo é como a Aliança.

Todas as vezes que os hebreus trocavam de lugar ao longo do deserto, eles levavam, com muito ardor e devoção, a Arca, que continha as tábuas da lei dentro dela. Naquela procissão, o povo aclamava a presença divina, simbolizada nas tábuas da lei, e cantavam com grande reverência e adoração. As crianças seguiam o cortejo acenando com ramos e jogando tapetes e flores pelo chão, bordando um verdadeiro tapete colorido. Jogavam mesmo suas vestes, seus véus e panos coloridos. Esta devoção à Arca, que continha as tábuas da Aliança, preconiza simplesmente a beleza do ritual das procissões de Corpus Christi.

É bem semelhante a  ritualidade cristã e todos os textos invocam a presença do Deus da Nova Aliança que se faz presente no pão eucarístico, como se manifestava no maná do deserto.

Na obra “Tempo comum e a Festa dos santos” (Paulus.2010) , encontramos esta solenidade  entre os rituais cristológicos, e compreendemos suas mensagens bíblicas. Neste ano, Ano A, os textos destacam “o sentido da eucaristia, como dom de Deus ao seu povo a caminho rumo à libertação. A liturgia apresenta  a relação entre o dom do maná no deserto, oferecido como alimento para a caminhada do povo (Dt 8,2-3.14-16a) e o corpo de Cristo, oferecido como pão vivo, que desceu do céu, para a salvação e libertação de toda a humanidade (Jo 6,51-59).  O pão caído do céu, o maná, é adorado como pão vivo e verdadeiro, que é o próprio Cristo.

Com a liturgia barroca, a partir do século XVII, esta procissão se tornou um cortejo triunfal de ação de graças, visando também representar de modo apologético, o mistério eucarístico perante os cristãos não católicos, especialmente os protestantes.

O sentido teológico mais atual desta celebração, com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, é a unidade do povo ao redor do seu Senhor, presente na eucaristia, sua força na caminhada do povo em marcha e o compromisso com os irmãos mais sofridos de nossa sociedade.

 

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AS PROCISSÕES MAIS LINDAS

É extremamente agradável notar as comunidades envolvidas na confecção dos tapetes. Não se trata de um movimento eucarístico presente somente no Brasil, nas regiões sul e sudeste. Ao contrário, notamos os tapetes e as procissões espalhadas por todo território nacional e se levantarmos o rosto, vemos ruas decoradas lindamente em tantas cidades e países no mundo inteiro.

Entre nós, algumas cidades, os tapetes se tornaram atração turística, como podemos ver nas cidades de Matão, Santana do Parnaíba, Itu, entre tantas outras. Vale a pena visitar estes e outros lugares para perceber a grandeza dos tapetes, que adornam quilômetros de pura arte, à espera da procissão dos fieis, acompanhando os sacerdotes e cantando, todos louvando e adorando o Senhor, presente na Eucaristia. É uma grande festa para os olhos e um cântico de fé para o coração. Por certo, esta cerimônia implicou em dias e semanas em preparação, recolhendo material, pintando serragens, preparando painéis e as formas básicas para os símbolos religiosos. No dia da festa, são horas longas e ansiosas para que tudo fique pronto para a visita dos fiéis e para a grande procissão. São mutirões incontáveis de jovens, adultos e crianças colocando a mão na massa. Podemos recordar um caso, para compreender milhares de outros, cada um à sua maneira. Em Rio Claro, na Paróquia Nossa Senhora da Saúde, os grupos se organizam por pastorais e cada grupo prepara um desenho que represente sua pastoral e sua missão na comunidade. Alguns mais ousados chegam a desenhar imagens de Cristo, de Nossa Senhora e de santos com produtos finos de pintura, sempre à base de serragem. Outros trabalham com flores, tampinhas e produtos descartáveis.

Depois da procissão, grande é o trabalho para deixar tudo limpinho, mas valeu pela emoção de adorar o maior mistério de nossa fé: Cristo vivo na Eucaristia. Esses rituais deixam marcas indeléveis em nossa memória e fortalecem a nossa tradição.

 

MISTÉRIO DA EUCARISTIA E OS FIEIS

Na catequese primordial, meditamos com alegria no binômio interativo: sem a Igreja não se celebra a Eucaristia e sem a Eucaristia é estéril a vida da Igreja.

A descoberta constante da imagem da Igreja nos aproxima da plenitude da fé cristã, assim como o aperfeiçoamento da comunidade eclesial nos identifica sempre mais do projeto do Reino de Deus na história cósmica e humana.

O mistério da Eucaristia é imenso, mesmo inefável. A tentativa histórica de compreender e descrever este mistério  é constante na espiritualidade cristã. Nem sempre reconhecemos todas as dimensões da Eucaristia e nos fixamos em visões limitadas, aprisionando a espiritualidade eucarística a condicionamentos humanos e, pior ainda, visões humanistas deturpadas.

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A celebração da Eucaristia tem dois movimentos fundamentais: um encontro transcendental que se realiza na comunhão com Deus e um compromisso comunitário que se realiza na ação do bem. Ao celebrar o ritual, entramos em unidade com a vida divina e completamos nossos atos relacionais com todo universo, presentificado nas espécies eucarísticas: eis a mística da celebração eucarística. O segundo movimento da vida eucarística converge para as realidades humanas e é expressão concreta do movimento transcendental. Esta dimensão nos projeta para a solidariedade com os maltratados da sociedade, os excluídos dos templos e os desandados do bom destino do amor. A confluência destes movimentos equilibra a comunidade eclesial. Cristo está presente nas espécies eucarísticas, assim como os pobres e pequeninos são partículas divinas, onde servimos e amamos o Deus da vida.

Para além dos rituais, dos dogmas, da rigidez dos ritos, a Igreja celebra a Eucaristia como o encontro com Deus, que nos projeta para a inserção na história da humanidade.

 

 

 

 
Prof. João Henrique Hansen – Padre Antônio  Sagrado Bogaz
Autores de Quaresma: tempo de conversão. Editora Recado. 2010
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