PARCERIA NO CALVARIO AS LITURGIAS DA VIA SACRA

 

PARCERIA NO CALVÁRIO

AS LITURGIAS DA VIA SACRA

 

Entre os vários rituais que compõem a grandeza litúrgica do ciclo pascal, dentro do período da Quaresma, encontramos a Via Sacra, que ao longo da história foi celebrada com grande devoção pelos fiéis e, ainda mais, representada em estradas, templos e infinitas coleções artísticas. Este ritual litúrgico, tão importante na liturgia barroca, que herdamos de nossos evangelizadores ibéricos, está presente em todas as partes do mundo e é celebrado com muitas formas rituais e devocionais. Conhecer o itinerário desta “Via Crucis” é uma forma de perceber a espiritualidade quaresmal, em toda sua diversidade cultural e religiosa ao longo dos tempos. Basta recordar que este ritual teve uma grande transformação no período pós-conciliar, assumindo a espiritualidade eclesial deste período, numa aproximação significativa com a realidade do povo. A Via Sacra foi enriquecida por uma trajetória hermenêutica que a revolucionou profundamente. Basta reconhecer que pelos temas das Via-Sacras das últimas décadas, entendemos o processo social e político da realidade concreta de nosso povo. Foi um longo caminho para a composição das estações clássicas deste ritual, que tem grande teor místico e eclesial.

 

DSC_7203

A ORIGEM RITUAL DA VIA SACRA 

92
24-2-2013 174

Celebramos este ritual partindo do caminho percorrido por Jesus, desde que sofreu sua condenação na praça pública diante do palácio de Pilatos até seu sepultamento.

No interim deste alfa e ômega da história de Jesus, nestas horas trágicas, consideramos estações como os vários acontecimentos que se sucederam nesta trajetória. Jesus viveu momentos importantes e significativos, como os percalços das quedas e das ações dos algozes, mas sobretudo os grandes encontros com seus seguidores, particularmente Maria, sua mãe.

Os fiéis são convidados a celebrar estes acontecimentos em forma de meditação e prece, considerando a injustiça da condenação, as dores e o cansaço, as maldades e provocações dos soldados e o desfecho cruel desta história. Mais que tudo, porém, para ser mais envolvente, os devotos contemplam as ações solidárias, que são vividas pelos amigos de Jesus, conforme são narrados nos capítulos dos evangelhos.

A intenção dos pastores da Igreja e das comunidades de envolver os fiéis neste evento, tornando-nos parceiros do próprio Senhor, edificou as estações da Via Sacra.

A inspiração primordial deste ritual, segundo as pesquisas históricas, vem das Cruzadas, no início do segundo milênio. Com a intenção de recuperar os lugares sagrados, que haviam sido tomados pelos muçulmanos, os fiéis que iam à Terra Santa, percorriam com grande devoção o caminho que Jesus percorrera antes de sua crucifixão e morte.

Para estes fiéis tornava-se muito importante tocar os lugares onde ocorreram tais acontecimentos. A Igreja sempre nutriu este sentimento místico que aproxima a espiritualidade de suas relíquias.

Assim, para os cruzados era uma grande graça poder tocar as pedras, a terra e as árvores tocadas por Jesus, onde derramou seu sangue.

 

UM MODELO ORIGINAL 

Uma devota chamada Egéria (ano de 358, segundo estudiosos) deixou-nos um importante testemunho, normalmente conhecido como Itinerário de uma viagem ou Diário de Egéria, no qual deixa evidente este sentimento cristão de intensificar a espiritualidade vivendo os acontecimentos no mesmo lugar e nos mesmos horários que se realizaram. Desta feita, segundo seu testemunho, os cristãos de Jerusalém se encaminhavam para os mesmos lugares sagrados e nas mesmas horas (manhã, noite, madrugada ou entardecer) que Jesus vivera sua história. Entende-se, com grande lógica, porque na manhã de domingo anterior à Páscoa, todos se dirigiam para o horto e vinham com ramos para dentro dos muros da cidade. 

Segundo seus relatos, os cristãos, ainda de maneira pouco sistematizada, percorriam as ladeiras e vielas deste o antigo palácio romano até o Gólgota, recordando com os textos bíblicos, os acontecimentos. Depois, dava-se a dispersão do povo, que se encontrava no mesmo lugar do túmulo da ressurreição, para a Vigília Pascal. Egéria, na sua descrição ritual, não descreve os acontecimentos como estações, mas entende-se que os féis percorriam o mesmo caminho, para celebrar a história de Jesus em suas vidas. 

PD 9

Do Oriente, esta tradição passou para o Ocidente, onde os cristãos, por não poderem celebrar os eventos “in loco”, procuram ater-se às mesmas horas, simulando mesmo os lugares (montes, ladeiras, pedras e imagens) de Jerusalém. Não temos nem nas narrativas de Egéria e nem nas narrativas dos Cruzados a formatação de nossos tempos, pois somente a partir do Século XVI, depois das controvérsias com os reformadores, os cristãos celebram as estações em modelos semelhantes aos modelos atuais. A grande força espiritual é unir-se aos sofrimentos do Filho de Deus, sentindo sua dor e sua humilhação e admirar os personagens deste caminho que corajosamente foram parceiros do drama humano do Filho de Deus. 

 

 AS PRIMEIRAS ESTAÇÕES 

DSC_7201

Assim como o Rosário, que procura meditar, numa dinâmica mais estática, em templos ou oratórios, a Via Sacra percorria os fatos da vida de Jesus. E assim como o Rosário que tocava a infância, as últimas horas e finalmente a glória, este ritual original procurava recordar e reviver acontecimentos da vida de Jesus, desde seu nascimento até sua morte.

Um relato muito antigo, conhecido como o Peregrino de Bordéus (ano de 333) conta a dramatização dos acontecimentos da história de Jesus. Ele nos fala de um ritual vivido com grande emoção, como se a comunidade voltasse no tempo e ouvisse ainda os gemidos e clamores de Jesus e as lamentações do povo. Podemos imaginar que o ritual se parecia com os modernos espetáculos de “som e luz”, os quais levam os espectadores a sentir-se transladado no tempo para reviver a história original. Desde os Cruzados, que trouxeram as tradições orientais para a Europa Ocidental, os monges na Idade Média propagaram a prática como um ritual litúrgico popular, sobretudo para os camponeses, que não tinham conhecimento das letras para rezar os Salmos na Liturgia das Horas.

Por esta razão, os mosteiros medievais construíam monumentos, com edifícios ou imagens, para imitar os lugares sagrados de Jerusalém. Mesmo nesta cidade os lugares não eram possíveis, pois os cristãos deviam se restringir aos espaços conquistados ou permitidos pelos muçulmanos. No período pós-Trento (século XVI), temos uma lista das estações, que via de regra, cumprem o simbólico número de 14, mas, como recordamos, trazem descrições de eventos da infância e da vida pública de Jesus, bem como os acontecimentos dolorosos de sua paixão.

Reportamos a  relação das estações, por seu caráter curioso e sua espiritualidade, que se firmou com os séculos. São, normalmente, estas estações, mas poderiam ter algumas variações:

01-   Agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras
02 – Traição de Judas e a prisão de Jesus
03 –  Condenação de Jesus
04 –  Negação de Pedro por três vezes
05 –  Jesus no palácio de Pilatos
06 –  Flagelação e a coroação de espinhos
07 –  Jesus carrega a pesada Cruz
08 –  Jesus é auxiliado por Simão Cirineu
09 –  Encontro com as mulheres de Jerusalém
10 –  Crucifixão de Jesus Cristo
11 –  Diálogo de Jesus e o Bom Ladrão
12 –  Maria e João aos pés da Cruz
13 –  Jesus Cristo morre na Cruz
14 –  Deposição de Jesus no sepulcro.

Percebemos claramente como são os acontecimentos, que tem datação e descrição na tradição cristã. Nem todos os momentos retratados se encontram nos textos canônicos do Novo Testamento, pois alguns deles estão descritos nos textos apócrifos. 

Existe mesmo uma tradição antiga, contada como uma lenda piedosa que este itinerário foi traçado pelos apóstolos que acompanhavam Maria Santíssima, depois da ressurreição de Jesus. Ela sempre percorria estes lugares, para recordar a história de seu Filho.

Seu propósito de mãe é reviver suas dores naqueles lugares memoráveis.

Com o tempo, na Palestina, os reis e bispos foram construindo templos nestes lugares. No Ocidente, a igreja dedica templos para rememorar estes eventos sagrados. 

2
 
SL 13

Ainda para completar as informações e entender a mística deste ritual, recordamos que em alguns lugares do Ocidente, sobretudo fora de Roma, encontramos a Via-Sacra com apenas 7 estações, representadas em pinturas, altares e esculturas. Normalmente os episódios mais recordados são as quedas de Jesus, o encontro com Maria, sua mãe, o socorro de Simão de Cirene, a lamentação da mulheres, o sudário ensanguentado de Verônica, a prostração sob a cruz e a deposição no colo de Maria, conhecida como “Pietà”. Este itinerário encontra-se no cerne dos diferentes rituais, que vão se tornando sempre mais um relato trágico e doloroso, que inspira compaixão dos devotos. Em outras partes do Oriente, encontramos 8 estações, sempre similares e mesmo uma quantidade extrema de 37 estações.

 

ELABORAÇÃO FINAL DAS ESTAÇÕES 

Como encontramos hoje em todas as Igrejas e com uma prática muito intensa, devemos a um carmelita flamengo, Jan Pascha, sua formatação. No século XVI, este frei carmelita, para alimentar a fé do povo mais simples, em tempos de protestantismo, apresenta a “Peregrinação Espiritual”, para alimentar e animar a devoção e a fé de seus coirmãos, mas também dos fiéis em geral, pois se tratava de um ritual devocional, sem grandes leituras e que podia facilmente ser memorizado pelos rezadores populares. Especialmente para os freis, este ritual era o ápice dos exercícios espirituais. Mesmo tendo havido pequenos retoques, o essencial desta versão de Jan Pascha permanece até nossos dias.

Prestamos homenagem ao Frei Leonardo de Porto Maurício, que seguindo a espiritualidade dos frades franciscanos, edificou 572 “via crucis”, no ano de 1751. Espalhou-se a devoção por toda a Itália. Foi um caminho de conversão para o povo cristão e assim combater as heresias do período.

Sem atingir a mística deste exercício de piedade, devemos afirmar que não existe uma constatação rigidamente histórica para a descrição do caminho de Jesus do Pretório ao Calvário, ainda que em nossos tempos muitos peregrinos que visitam Jerusalém percorrem a trajetória provável dos acontecimentos originais. Além disso, nem todas as estações se encontram nos textos dos evangelistas, pois as mesmas foram incrementadas por eventos reportados em textos não canônicos bíblicos.

 

PD 4
 
frei galvão familia 1

Os fiéis celebram a Via Sacra como forma de elevação espiritual e envolvimento com a história de Jesus Cristo, buscando nos seus personagens o modelo de ser dos cristãos. Importa entender a presença de Maria, a coragem de Verônica, a solidariedade de Cirineu, o sentimento das mulheres chorosas e a generosidade de José de Arimatéia e Nicodemos. Cada personagem é uma lição de vida para os cristãos. Tal solidariedade que se demonstra diante da figura do Cristo Sofredor, se concretiza na história real de nossos irmãos. Por esta razão, desde os primeiros anos da Campanha da Fraternidade, sempre se procurou integrar no sofrimento do Cristo, o sofrimento dos nossos irmãos, entre tantos, as crianças abandonadas, os indígenas, os negros, as mulheres e tantos pobres. O sofrimento de Jesus é o sofrimento dos irmãos e ao contemplarmos sua dor, nos voltamos para nossos irmãos que carregam pesadas cruzes. E partilhamos com eles suas angústias e sua humilhação. Mas, não terminamos a Via Sacra no sepulcro. O ápice da Via Sacra é a 15ª estação, na qual celebramos a plenitude da vida, a ressurreição de Nosso Senhor.  Finalmente, entendemos que o caminho sagrado de Jesus na história se inicia na sua encarnação, no ventre de Maria e termina na sua ressurreição, no seio da Trindade.

BM 9
 
PD 18
 



Prof. João Henrique Hansen – Padre Antônio  Sagrado Bogaz
Autores de Quaresma: tempo de conversão. Editora Recado. 2010
PBJH
CRUZ: SÍMBOLO REDENTOR
Mesmo que a tradição bizantina, semelhante àquela ocidental, dedique o dia 14 de setembro para a exaltação da Santa Cruz, o terceiro domingo da Quaresma é voltado para a adoração da cruz. Seu destaque se manifesta na sua posição, no centro da Igreja, para a veneração dos fiéis. Os textos das orações elevam a Santa Cruz como caminho de santificação e apelo à conversão, como encontramos no Domingo de Adoração da Cruz, no Ano Litúrgico Bizantino: “Senhor, na magnificência do teu amor, apaga a multidão de meus pecados e faz com que, nesta nova semana de jejum, possa enxergar e adorar tua Cruz com a alma purificada”.  A Cruz é a inspiração da santificação para os pecadores que suplicam piedade, pois ela foi transformada em caminho de vida, o que era instrumento de morte. Entre tantos temas recorrentes na liturgia quaresmal bizantina, a Cruz toma um lugar especial, pois seu misticismo se encontra na oferenda do próprio Filho de Deus, tornando seu sacrifício o caminho da redenção da humanidade.
 
9
A VIA SACRA DE JOÃO PAULO II
O celebrante da Via Sacra não deve buscar indícios historiográficos da história final de Cristo, mas percorrer os caminhos com fé e espírito aberto para tocar o coração de Deus. O Papa João Paulo II, nos anos de 1991 e 1992, celebra a Via Sacra em Roma, trocando passagens sem registro bíblico por passagens tiradas dos Evangelhos. Assim, apresentou a seguinte sequência:
 01– Agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras
02 – Traição de Judas e a prisão de Jesus
03 – Condenação de Jesus
04 – Negação de Pedro por três vezes
05 – Jesus no palácio de Pilatos
06 – Flagelação e a coroação de espinhos
07 – Jesus carrega a pesada Cruz
08 – Jesus é auxiliado por Simão Cirineu
09 – Encontro com as mulheres de Jerusalém
10 – Crucifixão de Jesus Cristo
11 – Diálogo de Jesus e o Bom Ladrão
12 – Maria e João aos pés da Cruz
13 – Jesus Cristo morre na Cruz
14 – Deposição de Jesus no sepulcro.
 
 
ilustração:
Encenações Semana Santa – Paróquia Nossa Senhora da Saúde
filmes: Pão Divino, a vida de São Tarcísio
São Longuinho, o santo das coisas perdidas
Coração Imaculado, a vida e a obra de Bárbara Maix